Os Italianos em São Paulo

Os italianos em São Paulo

Pelo Dr. Dráuzio Varella

O Brás era um bairro cinzento, com ruas de paralelepípedo e poucos automóveis. Ao meio-dia as sirenes anunciavam a hora do almoço nas fábricas. Como não existiam prédios, de toda parte viam-se chaminés e as torres da igreja de Santo Antônio apontando para o céu.

A paisagem humana do bairro era dominada pelos italianos, mais numerosos e barulhentos do que os portugueses e espanhóis da vizinhança. Gente simples, oriunda de pequenos povoados devastados pela guerra, uma mistura de calabreses, napolitanos, sicilianos, vênetos e milaneses. Falavam dialetos incompreensíveis uns para os outros.

Os do norte da Itália costumavam ser mais instruídos. Eram geralmente operários especializados que punham os filhos em escolas particulares: o Coração de Jesus, dos padres salesianos, ou o Liceu Acadêmico São Paulo, na rua Oriente. Não se davam bem com os italianos do sul: napolitanos, calabreses e sicilianos, chamados por eles de carcamanos, com desprezo.

Contam os mais velhos que a palavra "carcamano" teria surgido para designar comerciantes calabreses desonestos. Ao pesar a mercadoria naquelas balanças antigas, de prato pendurado numa mola, eles empurravam o prato da balança com a mão para roubar no peso: eram os "calca a mão", que no sotaque italiano teria virado "carcamano".

Os operários saíam cedo, com a marmita embrulhada no jornal e o guarda-chuva preto. Garoava muito em São Paulo; a cidade era cercada por matas e conhecida como "a terra da garoa". Entre os trabalhadores muitos eram adolescentes, mas não havia mais crianças: o trabalho antes dos catorze anos tinha sido proibido. Essas imagens marcaram a minha infância: para ser homem, precisava acordar cedo e ir para a fábrica com a marmita.

Nem todos eram operários, no entanto. Havia barbeiros, alfaiates, marceneiros, sapateiros e ambulantes que passavam com a carrocinha. Entre eles, um napolitano com um latão cilíndrico nas costas anunciava com voz musical:

- Olha a pizza! A pizza! Mozzarella i pomarolla"n coppa!

Queria dizer que a pizza tinha tomate em cima da mussarela. Ele forrava o latão com um pano branco e ali dentro os discos de pizza vinham cuidadosamente empilhados, separados uns dos outros por folhas de papel-manteiga. Eram preparadas pela mulher dele no forno a lenha. Não custavam caro mas poucos compravam, porque os imigrantes eram pessoas econômicas. Napolitanos como esse foram os precursores das pizzarias que surgiram no Brás, nos anos 1950.

Nós não tínhamos geladeira. A primeira que vi foi na casa da minha avó espanhola, aos oito anos, pequena como um frigobar. Não funcionavam com eletricidade; pela manhã o caminhãozinho da fábrica de gelo deixava na porta das casas uma pedra grande e antes de sair os homens a carregavam para dentro da geladeira, para resfriar os alimentos. Sem geladeira, era perigoso guardar comida para o dia seguinte. Naquele tempo, muitas crianças pequenas morriam de diarreia por ingestão de alimentos contaminados.

Tudo passava na porta das casas: o verdureiro, o peixeiro, o batateiro, o comprador de garrafa e um napolitano que anunciava:

- Compra roupa usada. Bom preço, freguesa. Ternos, vestidos, chapéus e lingeries finas.

O comércio de roupa usada estava nas mãos dos napolitanos, que vendiam até casimira inglesa. Feita na Mooca, dizia o tio Constante. Dos vendedores, entretanto, que mais atraía a criançada era a negra do manjar, uma mulher roliça, de sorriso alvo e com perfume de rosa. Vinha com vestido de baiana rodado, um tabuleiro no turbante e o suporte de madeira na mão. Montava o tabuleiro na calçada e, sobre a toalha bordada, exibia a mercadoria. Com a luz do sol, o manjar brilhava trêmulo aos nossos olhos.

Quando minha irmã e eu pedíamos dinheiro para o manjar, meu pai negava quase sempre. Dizia que manjar bom era o que ele fazia em casa com leite e que o da negra só tinha farinha e água. Despeito puro: o dela era muito superior.

A criançada, sem dinheiro, rodeava o tabuleiro e morria de inveja dos que chegavam para comprar. Uma tarde estávamos ali em volta quando um Ford preto parou logo a frente e deu marcha à ré. Desceu um homem grisalho de terno e gravata, tirou a carteira do bolso do paletó e disse à vendedora:

- Boa tarde, senhora, pode dar um doce para cada criança, por favor.

Nós agradecemos, mas só tivemos coragem de dar a primeira mordida depois que ele entrou no carro. Eu nunca tinha visto uma pessoa tão generosa, e tão educada que dizia: "Boa tarde, senhora!".


Drauzio Varella. Nas ruas do Brás.São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2000, p. 25-27

Imigração italiana na cidade de São Paulo